.
Querido Professor Noamy,
.
Quero agradecer-lhe pelo constante apoio e “fluxo de elogios” que vem escorrendo da sua boca para os meus ouvidos e ego(latria).
.
Não tem escapado à minha atenção, que os outros alunos parecem mais inclinados a desenhar flores, coelhos e bolas de futebol, enquanto eu… só vou tracejando revólveres, contentores do lixo, couraçados e fábricas de armamento (às quais dei o nome de “Amatol“). Talvez a sua experiência no Ultramar seja a razão pela qual o Sr. me compreende melhor.
.
Quanto tenho ido às traseiras da nossa (muito) ampla sala de aula, quer para lavar as mãos, ou para afiar o lápis, no regresso, tenho ficado transfixado no dorsal das minhas colegas. Mais especificamente, numa protuberância do seu vestuário, uma espécie de “catenaccio” que repousa sobre as suas vértebras torácicas.
.
Naturalmente… “intrometido” em virtude dos meus 10 aninhos, decidi agaturrar um desses “fechos”, e comecei a puxá-lo. Puxei, puxei, puxei, e, aparentemente, quanto mais puxamos atrás, maior é o desconforto que provocamos na frente (delas).
.
Li num jornal Inglês comprado nos Restauradores, que o princípio de um… “porta-seios” é basicamente como aqueles guindastes que usam para içar as baleias mais voluptuosas para fora dos assalganhados porões de carga das traineiras. Imagino a “descomodidade”…
.
Depois de puxar com tudo o que tinha, decidi largar. E ouviu (ouviu-se) algo, um bramido, um guincho, qualquer coisa que indicava desconforto e desprazer.
.
Apercebi-me então, que para além da Lei de Newton de “Acção e Reacção“, que aquilo no fundo é semelhante a uma “fisga“, e quando soltamos o elástico, há uma Causa e Efeito, uma acção e reacção, por assim dizer (escrever). Uma elasticidade desprendida seguida de um guincho de desgosto e dissabor.
.
Querendo eu testar a teoria, naturalmente, decidi puxar-lhes a “fisga” várias vezes mais. Até que as… “portadoras” se viraram para trás e comunicaram-me toda a sua considerável insatisfação.
.
Posteriormente, tenho dado comigo a deixar cair a minha borracha na frente das carteiras das minhas colegas de turma, e posteriormente, agacho-me, mesmo em frente às suas virilhas, e fico a tentar perceber algo…
.
Algo que não consigo (ainda) explicar, mas há um “magnético” fascínio e misticismo que ali “pernoita” (e diurna). Elas começam a queixar-se (denoto aqui um padrão…), até que os queixumes chegaram às (consideráveis) orelhas do Director de Ciclo.
.
O Director supra-referenciado obrigou-me a ir ao Psicólogo do Colégio, mas ele faz-me perguntas em que chego à conclusão, que ele não me compreende, nem a mim, nem a qualquer outro rapaz da minha idade. Eu que sou facilmente curioso (sobre tudo e sobre… todas) e inclusive, possuirei alguma ansiedade pré-pubescente. Apenas e tão somente isso, e nada mais (!), passo o pleonasmo.
.
Ele (o Psicólogo) a falar parece uma mistura entre um computador “escangalhado” e uma arca-congeladora em “overclocking“. É tão… tão frio e racional. Não admira qu’ele não entenda uma criança.
.
Na minha opinião auto-diagnóstica sincera, somente três coisas me diferenciam dos restantes colegas: eu tenho mais imaginação, sou mais curioso, e sou (muito)mais extrovertido.
.
Não lhe parece caricato, que enquanto a maioria dos meus colegas estão entretidos a aprender a diferença entre um formão e um escopro, eu estou antes na biblioteca a memorizar a história da Unesco, ou uma mini-biografia de Carlos Magno ou Alfred Hitchcock.
.
Eu sou (deveras) inquisitivo, simplesmente não necessariamente sobre trabalhos manuais, geografia ou Miguel Torga
.
Eu simplesmente, sou um bocadinho “diferente” dos demais, as minhas indagações “habitam” noutros “quadrantes”. E ainda bem, senão, quando saísse daqui, ainda era capaz de ir para Polícia Sinaleiro na Almirante Reis. Só de ponderar tão malcontente “desfecho”, até passei a cuspir nos “bocas de sapo” que por aí vejo estacionados.
.
E para estes “autómatos” que por aqui andam ordeiros que nem sacristãos, tudo o que para eles sai da norma, é maliciosamente rotulado de “estranho”. Eu também os considero “lentos”, “básicos”, rudes, pouco perspicazes e “vaciladores”. Portanto, cada um fica na sua…
.
Reparei que aqueles com uma auto-estima incontível, chamam-lhes de “arrogantes”. Aos extrovertidos chamam-lhes de “tarados sexuais”. E aos imaginativos, mandam-nos para debaixo do “jugo” d’um psicólogo álgido e pouco empático.
.
Gosto muito das bibliotecas aqui no Colégio, mas toda esta instituição parece mais interessada em “produzir” “alunos-robots” sem qualquer personalidade individual, do que em fomentar a nossa criatividade e audácia pelo risco e inconformismo.
.
Os meus progenitores podiam ter-me matriculado no Colégio das Caldinhas em Santo Tirso, aquele onde estudou o “Papa”. Mas escolheram-vos antes a vós, pois foi aqui que “plasmaram” a Dra Isabel Stilwell.
.
Perdoe-me a franqueza, querido Professor, mas quem aqui rege, pela sua falta de visão, eles estão a desperdiçar-me em gabinetes de Psicólogos e em aulas de trabalhos manuais, pois eu não tenho qualquer intenção de fazer carreira como marceneiro ou esquizofrénico…
,
O que eu gosto verdadeiramente de fazer, é ouvir o som da minha própria voz, e de ler a minha caligrafia privativa.
.
Vocês estão a tentar “martelar” o meu “Rossio” para dentro da vossa “Betesga intelectual”. Eu sempre ouvi dizer, que quando resistimos, a única coisa que nos arriscamos a perder são as grilhetas.
.
Aqui, sinto-me verdadeiramente incompreendido, enclausurado e “recriminado”. E tudo por causa de uns sutiãs e de uns berros estridentes…
.
Foi um momento de aprendizagem. Já ocorreu, e eu já segui em frente, para novos “ensaios” e experimentações. Há por aqui bateladas de miúdas, e a maioria nem sequer é filha de deputadas do PSD.
.
Se tudo isto é estranho? É! É no momento, e é quando verbalizado, mas palpita-me que daqui por uns anos, se passado para o papel, tudo isto vai soar…. a hideosincracias e excentricidades maravilhosas, ou quiçá, até mesmo, uma espécie de “genialidade” irascível e pouco convencional
.
Até lá, irei continuar a experimentar estas “interacções”, e a acondicionar tudo na minha memória.
.
Tenha um excelente dia.
Aluno 794.
.
Quinta do Lambert,
29 de Agosto de 1985,
.
Texto: Santiago Gregório Fuentes.
Imagem: Direitos Reservados.
.
Facebook Comments