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Era um pôr-do-sol de Segunda-Feira agradável, e ainda dois dias antes, Daniel Karpov havia estado nas bancadas do Jamor para “testemunhar” as “cavalgadas” heróicas de Miss Chandra Davidson, quando mesmo ao 95º minuto, a portentosa loira Canadiana ligava o “turbo” e que nem um fenómeno dotada de 6 pulmões e 3 pares de aurículos e ventrículos, acelerava pelo flanco abaixo para vir cortar com competência e arreganho as linhas de passe das adversárias.
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Mas as “Segundas Maníacas” eram isso mesmo, e aquele “rendez-vous” pré-nocturno tinha supostamente o propósito de jogar Xadrez e esgrimir opiniões divergentes. Daniel sabia, que sem debates, a sua “lâmina argumentativa” ficaria “romba”, daí, aceitava todas as oportunidades para discutir. Na pior das hipóteses, não iria seguramente deparar-se com um intelecto superior ao das Doutoradas Cláudia-Anna Karpov, Teresa Paiva ou Maria João Rodrigues.
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Daniel não era fã de comer fora, há muito adepto devoto de refeições de alto teor proteico cujos aminoácidos mantinham os seus Neurotransmissores em forma. Ele evitava nutrir-se fora da sua “fortaleza” no 16º andar, mas, após 6 anos a circundarem-se beira-Tejo, como dois tubarões de clãs ideologicamente opostos, finalmente ele ia conhecer pessoalmente a jovem erudita Mari-Joana Machão.
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O “teatro” escolhido pela moçoila Machão era o “Eleven“, um bar num terraço no topo do Parque Eduardo VII. Que cenário opulento, decadente e burguês havia escolhido aquela Marxista-Leninista…
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Daniel não era fã daquele jardim, que embora bonito, era “afamado” por ser frequentado por rameiras, lésbicas e um ex-Deputado conservantista que era apreciador da Marinha de Guerra. Karpov trazia consigo um exemplar do Wall Street Journal – propriedade do capitalista Rupert Murdoch – comprado na Praça dos Restauradores, enquanto Mari-Joana tinha ao lado do seu tabuleiro de Xadrez uma cópia de “Das Kapital“, da autoria do fracassado economista Karl Marx.
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A “muchacha” Machão parecia tremer, mas não de apreensão, como que tentando conter uma mescla de ansiedade e agressão-passiva. Daniel estendeu-lhe a mão, mas ela espalmou os lábios em “beicinho” e respondeu-lhe apontando antes a cadeira para se poder sentar. “Vous pouvez vous asseoir, s’il vous plaît!“, enunciou ela, num sotaque tão Gálico quanto a espuma das marés que embate contra a costa de Saint Aubin-le-Cauf.
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A… “arrapazada” Machão revelou-se apropriadamente… “Cavalheiresca”, e perguntou-lhe se queria comer algo, e Daniel fora de casa era mais previsível que um relógio Suíço, ele sabia que o seu cérebro funcionava melhor quando o seu sistema digestivo não estava enfartado. Pediu uma salada de agrião, cebola, tomate cherry e esparregado de espinafres, tudo sem quaisquer condimentos, e acompanhado de um sumo de laranja natural e uma água fresca com potencial hidrogeniônico apropriado.
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Machão parecia determinada, como que uma gigantesca “mola humana”, comprimida e capaz de “pinchar” a qualquer momento. Perante tamanha afoiteza, Daniel só podia esperar que a Fructose no seu sumo lhe desse energia necessária para conter aquela “azémola” progressista.
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Aparentemente, o desafio seria a dobrar, como que um psiquiatra de 5ª categoria, a Dª Machão queria que Karpov se debruçasse sobre dois fardos mentais em simultâneo; jogariam Xadrez, e ao mesmo tempo, esgrimiriam argumentos. Nesta ocasião, o tópico seria sobre a juventude dos dias que correm. Daniel reparou que a cadeira livre estava do lado das Brancas, e questionou se Machão queria mesmo que ele ficasse com essas peças.
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Ela rispidamente, disse que era apropriado para um “Supremacista Branco“, e assim… começava a “etiquetagem” e as graçolas “ad hominem“. No seu intimo, Daniel não se sentia Napoleónico, nem Czarista, mas não havia margem para dúvidas, naquela contemplação sarcástica, tinha sido dado a “salva” de partida. O canhão havia soado e Daniel depressa se revelaria ora “lebre“… ou “tartaruga“.
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Daniel começou com uma abertura básica, moveu o Peão de E1 para E4, Machão com “velocidade cibernética” ripostou movendo um Peão de D7 para D5. Era uma elementar mas eficiente, a linha de pensamento daquela diminuta Scalabitana. Daniel, mudando de “tabuleiro”, inquiriu se os jovens de hoje em dia, não estariam a aderir a uma vivência de alienação cultural por falta de empatia para com os “adultos”? Era a inquietude juvenil agora uma virtude nas mentes da gaiatada?
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E ao mesmo tempo, Karpov “saltou” com o seu Cavalo de B1 para C3, e Machão reagiu, adiantando o seu Peão uma casa mais, para D4, colocando assim, pressão em cima do cavalo branco. Daniel já havia cometido um erro de cálculo, a questão agora, seria uma de; ou colocar o seu cavalo a salvo e perder a iniciativa, ou intimidar o Peão negro preparando um contra-ataque? A questão prendia-se, era Machão a favor de ganhos materiais ou estratégicos, ou até que ponto, valorizava ela aquele mísero Peão…
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Após uns embaraçosos 60 segundos de meditação, Daniel “recuou” o seu cavalo para E2, e ao fazê-lo, colocou renovada pressão sobre D4, agora era Machão que iria sentir algum constrangimento táctico… Machão, mais uma vez com celeridade diabólica ajuizou, mas, não moveu o Peão “pressionado”, em vez disso, preparou um contra-ataque, deslizando o Peão de E7. Assim, não poderia ripostar o que pudesse acontecer em D4, mas Daniel percebia que a sua adversária começava a controlar o centro do tabuleiro, muito sensata e de acordo com qualquer manual da modalidade.
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Machão disse que não era uma polemista, não aderia a generalizações, e que nem todos os jovens eram ortodoxos, nem irreverentes, e que as abstracções eram fruto de mentes recriminadoras e por tendência conservadoras.
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Daniel moveu o seu Peão de C2 para C3, para colocar “dupla pressão” em D4, e Machão mostrou a sua mentalidade, ao avançar com esse Peão para D3, não só tinha aliviado a ameaça, mas demonstrava que pelo menos de momento, valorizada o seu material, e com ela, o risco seria zero! Tentando distrair a nanica, Daniel inquiriu se havia problemas a nível de terminologia, afinal de contas, a Dª Machão era uma “Hipster” ou não? Ao fim e ao cabo, a forma como se vestia, os livros que (alegadamente) lia, a música que ouvia, e a forma como se expressava, tudo parecia ir ao encontro das idiossincrasias dessa “doutrina”?
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Ao mesmo tempo, e sem grandes alternativas, fugindo e ao mesmo tempo à procura de soluções, Daniel mudava o seu Cavalo de E2 para G3, ao fazê-lo, sabia que pela 2ª vez, estaria a abdicar da iniciativa, não restavam dúvidas. Machão era temível!! De seguida, a “baixinha” de testa alta, respondeu deslocando o seu Bispo de C8 para E6. Era uma diagonal que aparentemente não representava perigo eminente e inequívoco, mas Daniel já sabia que não a podia menosprezar. Em profundidade, ela já havia calculado algo, mas o quê?!
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Mas antes que ele a pudesse distrair, ela replicou, disse que ela pessoalmente, tinha empatias sentimentais e afinidades ideológicas para com os “Hipsters”, mas que as suas… “soluções” políticas eram mais radicais, mais… “revolucionárias”, mas que não era adepta de drogas leves nem sexo furtivo, e que as suas raízes culturais não eram clássicas, mas mais assentes nos “ensinos” de J.K. Rowling.
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Daniel não sabia que espécie de “psiquiatra” era aquela, mas estava a funcionar, pois ele já estava todo baralhado num tabuleiro, e à deriva noutro. Havia que “romper” algures… fazer alguma espécie de “Rochade” e recuperar a iniciativa. Se ao menos, von Manstein ali estivesse… Daniel ponderou “derramar sangue”, movendo o seu Peão de F1 para D3, capturando o Peão, mas, mais acima, a Rainha Negra aguardava e de caminho desempedido para contra-atacar, Machão havia “semeado” bem o terreno…
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Não vendo grande iniciativas, impaciente, optou por canalizar “jogo” pelos os flancos, e subiu o Peão de A1 para A3. Machão num piscar-de-olho replicou nas antípodas, transportando o seu Cavalo de G8 agora para F6, Daniel pela segunda vez, não conseguia “descodificar” a linha de pensamento estratégico da sua opositora, mas no mínimo, ela tentava controlar cada vez mais o centro. A sua falange avançada furiosamente, enquanto Daniel, na ausência de melhores convicções, andava “perdido” pelos flancos .
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Daniel interrogou se os “Hipsters” teriam um calendário político desenvolvido, se tinham um objectivo em mente. Machão alegou que termos como “Hipsters” não eram “bastardos”, mas, de forma alguma haviam sido “paridos” pelos jovens, mas que antes eram uma criação e rótulo oriundo na imprensa, numa tentativa débil de os ostracizar socialmente, e ao mesmo tempo, vender jornais a donas de casa reformadas nos intervalos do “Big Brother“.
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Esse não seria um prisma etarista, postulou – mas não verbalizou” Daniel? Sem grandes concepções tácticas, Daniel optou por comprimir E4, ao jogar o seu Peão de F2 para F3, no mínimo, estaria numa posição de contra-ataque, e um pouco mais perto do centro. Gradualmente, ele avançava a sua vanguarda. A réplica… “Machista” consistiu em Cavalo de B8 para C6, assim, não estaria tão próximo do “coração da batalha”, mas Mari-Joana começava a fazer avançar a artilharia de longo alcance.
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Mais, antes que Daniel pudesse enunciar algo, Machão insistiu que a palavra “Hipsters” nada queria dizer, nem os podia definir. Alegou que a palavra até poderia fazê-la pensar em “Hippies“, ou “Yuppies“, ou até em… Hipopótamos, mas era um título desprovido de conexões espirituais ou emocionais para com a juventude que ela ali representava. Não restavam dúvidas, por ali, as posições estavam tão extremadas, que era como comparar ténis multi-coloridos da ASICS com botas da tropa, negras, obstinadas, “sisudas” e fundamentalistas.
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Segunda ela, eram jovens solitários, ao contrário dos seus “homólogos” dos anos 50 e 60, os Hipsters não vagueavam em comunas. Daniel observava o terreno, com especial enfoque nos seus dois Peões a “Oeste”. Um hipotético avanço de um deles, barrado por um bispo negro. Por um processo de eliminação, optou por diversificar a sua ofensiva, e voltou a avançar pelos flancos, neste caso o Peão de A3 para A4. A resposta “Machónica” surgiu que nem um relâmpago, mais uma vez, nos “inversos”, e movia o seu Peão de G7 para G6, quase como se fosse um perverso “espelho” de Daniel.
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Karpov explorou, questionou-a, se os “Hipsters” não almejariam alguma espécie de papel… “sacerdotal“, alguma espécie de figuras heróicas da efeba “consciência Lusitana” neste novo século? Entretanto, os seus dois Peões a “Oeste” mais não podiam progredir, bloqueados respectivamente por um Cavalo e Bispo adversário. Já a “Leste”, o trilho do seu Cavalo também havia sido precavido pela sua “Nemesis”, travado tanto por um Peão como por um Bispo.
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Por mais cálculos que fizesse, para Daniel não havia uma das suas peças de primeira linha que não estivesse “imobilizada”. Ele percebera que minutos antes, havia perdido por completo qualquer tentativa de proactividade e estava agora limitado a reagir. Estava imobilizado, as opções tinham-se exaurido, agora, só restava o “autocídio”, ou estender a mão e propor um empate, isto quando já sabia que a derrora era mais do que provável… Mas saberia ela tudo isso, ou estaria demasiado focada em si própria?
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Daniel levantou-se, meteu a mão esquerda no ventre, curvou-se ligeiramente para a frente em semi-vénia, estendeu a mão direita e perguntou: “podemos ficar por aqui?“. Surpreendentemente, Mari-Joana aceitou, a sua cara era uma ode ao escárnio e resignação, os seus olhos só emitiam desprezo, para não dizer ódio.
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Sentimentos esses, que Daniel não sabia se eram nutridos por Heterofobia, Misandria, Androfobia(não, isto não é “alergia” aos Andrés…) ou Eclesiofobia. Mas Daniel percebera que aquele conflicto havia degenerado numa “guerra de trincheiras” em que avançar sem sacrifícios era agora impossível, para qualquer uma das facções.
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Mari-Joana Machão? Para Daniel, ela mais se assemelhava a uma Herodias, Salomé, Dalila, Jezabel, ou até mesmo “Eva“, mas com uns pozinhos da Dra Svetlana Mota D’Água à mistura… Talvez as Marxistas tivessem tanto “estômago” para martírios altruístas quanto um Objectivista como ele. No momento mais alto da sua humanidade pessoal revelar-se-iam elas incapazes de se sacrificar por qualquer causa que não a sua pessoal?
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Seriam afinal os egoístas e as altruístas assim tão diferentes? Ou a desgraça eminente fazia de todos nós cobardes e fatigados? Daniel estava assustado, mas ela… talvez ela fosse excessivamente cautelosa ou desconfiada, afinal de contas, ainda não se conheciam bem. Talvez também ela se encontrasse num dilema semelhante, ou fosse incapaz de tolerar a mais pequena escoriação e preferisse antes um “armistício” a qualquer mácula nas suas “hordas”.
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Fosse qual fosse a razão, Daniel sabia duas coisas, que tinha tido sorte em escapar ileso, e que aquela Ecosocialista, se nada mais, pelo menos sabia… “empurrar madeira“.
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Parque das Nações,
31 de Maio de 2022.
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Texto: Santiago Gregório Fuentes.
Imagem: Direitos Reservados.
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Post-Scriptum: Este texto foi uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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