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O velho Mestre Mário Hugo Karpov era um grande “raconteur“, não havia comício ou almoçarada onde poupasse esforços na hora de contar as suas estórias. Estorietas essas que pareciam intermináveis como se da caneta de Tolstoy tivessem “brotado”. Sim, quando ele começava a falar, havia “Guerra“, mas, raramente havia… “Paz“(ou sossego…).
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Crónicas essas, que eram regularmente interrompidas para se ouvir um “deixem-me acabar!!“(que elicitava alguns risinhos avunculares), e mal terminava uma resenha… Parava, respirava, suspirava, bebia um golo de água, e logo começava com outro conto saído da sua mente que se revelava uma autêntica cornucópia. Era mais inesgotável do que uma casa de repouso para pescadores, caçadores e “outros”.
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Mário Hugo era uma pessoa muito sociável, era a sua “arte“, a de criar “networking” com todos e mais alguns. Com facilidade metia conversa com tudo e com todos, e a todos e a tudo aproveitava para contar mais uma das suas fantásticas narrativas. Perdão, uma não! Contava-lhes a sua vida toda!
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Era uma auto-biografia ambulante e aparentemente suportado por uma energia inexaurível, pelo menos, para nos regalar mais uns episódios. Havia explanações para todos os gostos; de aviões desviados, de bancos assaltados, de paquetes “raptados”, de comícios frequentados, e de oficiais da PIDE espancados.
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Dom Mário era alguém que fazia amizades com facilidade, era um político nato, sempre a apertar mãos, sempre a cumprimentar velhinhas, a sempre a beijar bebés e a fazer festinhas a cães. Era capaz de olhar para uma mulher de 70 anos, e mais tarde, descrevê-la como um “trintona bonitinha“. E fazia-o ciente de que as pessoas gostavam dele e de que iriam responder com reciprocidade quando confrontadas com a sua simpatia e mil e uma “petas”. Até ao dia, em que se deparou, com um “eleitorado” suspeito…
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A sua esposa, Dª Bárbara Santos Karpov havia recentemente sido operada, e agora, estava de regresso ao Casarão Karpov a “um tiro” do Estádio de Alvalade, e onde iria fazer a convalescência acompanhada pela sua irmã, Dª Maria-Ana de Cascais. Naturalmente preocupado e extremoso, Dom Mário Hugo veio visitar a sua esposa, e ao entrar na casa apercebeu-se logo da presença do cão da sua amada, o diminuto “Gigi“.
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Mestre Mário adorava animais, ou no mínimo, adorava praticar com eles, o charme que mais tarde utilizaria em seres humanos, sim, os animais eram boas “cobaias”. Era uma enxurrada de simpatia, de elogios, de sorrisos, e… literalmente passar-lhes a mão pelo pelo.
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Mas Gigi era bera, tinha o tipo de “cara” que só seria adequada para liderar um sindicato de estivadores. Tal como as mulheres pequeninas acabadas de chegar da província, Gigi era aguerrido, refilão e imensamente barafustador. Mestre Mário sentara-se no sofá do 3º andar e começava a fazer festas ao animal supramencionado, isto apesar da cara de “poucos amigos” com que o canídeo lhe “respondia”.
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As festas aumentaram, o animal refilava, mas Mestre Mário insistia, e a cada rosnar e olhares de soslaio(em sua defesa, “Gigi” tem olhos à Rita Pereira…), as festas tornavam-se “massagens”, “fricções”, até que o bicho(de 4 patas) começou a sentir pressão na coluna, pelo menos, de acordo com uma testemunha(Dª Bárbara).
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E a pressão aumentou, até que Gigi “explodiu”, virou-se, arreganhou o dente e trincou com “tudo o que tinha”. Dom Mário gritou, puxou a mão e sangue começou a jorrar até atingir um quadro em honra de Fernando Pessoa pendurado junto ao espelho do salão.
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“Mordeu-me, esse, esse, esse… esse reaccionário. Pulha!! Sacana!!!” Dª Bárbara naturalmente, tomou o partido do seu animal(de 4 patas), e criticou seu esposo por ter desconfortado o seu fiel companheiro.
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Daniel Karpov tinha acabado de estacionar atrás da garagem e ainda veio a tempo de ouvir o grito lancinante que havia irrompido pela noite adentro. Entrou na sala, e viu o polegar do seu Pai a pingar sangue no chão. Dª Bárbara depressa gritou “cuidado com a minha carpete e os meus maples!!!“. Sua irmã, Maria-Ana de Cascais, que estava na cozinha adjacente, entrou de rompante, nervosa, e ao ver o sangue entrou em pânico e começou aos gritos, embora para com ninguém em particular.
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Daniel sendo prático, agarrou no seu Pai, antes que os outros 3 se unissem contra ele numa “cabala”, e em favor daquele pequeno “patife vesgo”, que agora, qual “dissidente”, tinha saltado para o colo da sua Dona em busca de “asilo político”, consolo e conforto perante tamanha gritaria e algazarra.
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Daniel levou o seu Pai até um enfermeiro na Avenida de Roma, e 5 minutos depois de ter sido violentado pelo animalejo, Dom Mário já regressava ao seu estado natural de grande cronista de lendas urbanas. A imaginação, ela é algo que nos permite… “amplificar a realidade”, e tornar as estórias mais interessantes, sim…!
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O enfermeiro Nuno-Alexandre Braz ao ver o Papá Karpov naquele estado de ensaguinação, ficou naturalmente preocupado. Braz queria dar-lhe uma vacina, e perguntou a Mestre Mário se era alérgico a algo. “Somente ao Benfica!“, respondeu de pronto o octagenário que dava ares a Sean Connery, e que agora, gradualmente ia recuperando a sua compostura.
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“Então, que animal lhe fez isto? Teria raiva? Era muito feroz?” Ui! Que erro havia cometido o enfermeiro Braz, aquela demanda era tudo o que velho Mestre necessitava para dar início à narração de mais uma lenda, e com ele a figurar no papel de protagonista principal, claro!
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“Olhe… deixe-me que lhe diga, Nuno-Alexandre. Foi um cão como jamais se viu e provavelmente, como jamais se voltará a ver… Aliás, nem sei se era bem um cão, mas se era, digo-lhe sem risco de exagero, que era um… Cão de GUERRA!!!”
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“E mais lhe afianço, inicialmente pensei que ele era meu camarada, mas revelou-se um… TRAIDOR, Traidor, Traidor!!” Os olhos do enfermeiro Braz ficaram dilatados como se de uma aldeã Alentejana fossem, e boquiaberto que nem uma Beirã ao avistar a Estação de Santa Apolónia pela primeira vez.
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Os pormenores surgiam em catadupa, e cada um era mais inverosímil que o anterior, mas, o “comício” estava montado… “Mas digo-lhe, nunca temi pela minha vida. Agarrei-o pelos ombros, cerrei os dentes, fitei-o nas ventas, e ali mesmo, jurei digladiar-me com ele até um de nós tombar em nobre combate!”
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Alegadamente(per Dom Mário…), ele havia chegado ao seu “castelo” no meio de uma penumbra demoníaca, e no seio da sua garagem, “Górgão“(na sua mitologia, o nome “Gigi” já não era conveniente…) fitava-o com olhos que brilhavam no escuro que nem fósforo vindo directamente dos reactores de Chernobyl.
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Não havia margem para dúvidas, Górgão era um “Belzebu” em forma de “canalha de 4 patas“, a fazer lembrar o caniche negro que havia tentado o Dr. Fausto na mitologia Goethiana. Mas com a diferença, de que este era pior, muito, muito, mas muito pior!
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Braz pensava… “Um Cão de GUERRA!!??” De que espécie de criatura mitológica se trataria? E por que razão Homero não a havia incluído na Ilíada como um digno adversário para Aquiles, Ajax ou Heitor?? Nuno-Alexandre ouvia e cada vez mais, ficava apoquentado enquanto visualizava o dito “bicho”.
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O socorrista já havia afrouxado o seu colarinho, bebido uma Aspegic com açúcar, e pensava agora no quanto a besta devia ser corpulenta, vigorosa, sanguinária, com dentes que nem lâminas e olhos como Cérbero, o cão que guardava justamente os portões do mal-afamado… Inferno.
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Com a hemorragia já travada, algum gelo havia ajudado na vasoconstrição, Daniel trouxe o seu Pai de volta ao carro, enquanto Nuno-Alexandre veio à porta do posto médico – com um ar consternado e ainda em estado de choque – para com um aceno solidário e de despedida, desejando as melhoras àquele bravo homem.
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A sua jovem mente devaneava com fantasias de cães monstruosos a “cavalgar” pela Alameda das Linhas de Torres, verdadeiros “lobisomens” à solta na circunvizinhança do Estádio de Alvalade. Era uma ainda “jovem” noite de Quinta-Feira, mas para o enfermeiro Braz não haviam quaisquer dúvidas, os malucos decididamente já andavam à solta no Lumiar.
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Texto: Santiago Gregório Fuentes.
Imagem: Direitos Reservados.
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