Um tempo houve, em que “Hippies” se tornaram “Yuppies“, consumismo era infeccioso, conservadorismo social era a “glória nacional”, mulheres usavam enchumaços nos ombros e demasiada laca, e actores e rockeiros descobriram os benefícios do “eyeliner“. E foi da “teta” dessa “idade” catabólica, que Trampinhas Redgrave se alimentou…
O Trampinhas Redgrave era uma criatura perigosa, a mais perigosa! Os seus dentes de leite doíam-lhe, e ele sentia-se… agreste, bondoso, mas mais rude que o habitual. Trampinhas recentemente tinha telefonado à sua Mãe(Dª Maria-Ana de Cascais) adoptiva, a perguntar-lhe se ela gostava de ir com ele à Ilha de Lesbos. Mas a Mãe disse-lhe que não. Trampinhas contra-argumentou, alegando que por lá, todas as moças jogam futebol, e metade delas, calçavam botas da tropa. Mas, a mulher de armas Carcavelense, ideologicamente conservadora, permaneceu inamovível na sua vontade de não visitar o covil da saficidade.
Trampinhas alternativamente sugeriu um “sojourn” até à Margem Esquerda do Sena, mas a sua Matriarca abateu liminarmente e… lapidarmente tal sugestão. Trampinhas tristonho, não lhe sobrou outro consolo desopressivo, senão ir ler pela 15ª vez “O Prisioneiro de Azkaban“, à luz das velas , sob o odor das buganvilias e aroma salgado do Atlântico que humedecia a areia 500 metros mais a Sul.
Trampinhas não se sentia tão desolado, desde que tinha feito a sua esplêndida viajem de Badajoz até Lisboa no porão de carga de uma carrinha, rodeado por melões de Monte dos Casqueiros, e outras iguarias Alentejanas. Por esses dias, Trampinhas tinha acabado de aderir ao Twitter, e tinha descoberto as opiniões transfóbicas J.K. Rowling. Mas, com a têmpera-mental de uma criança soldado, ele manteve-se perseverante, mesmo quando a carrinha chocalhava, tanto com as bandas sonoras, como com os apropriados sons de Tom Waits a vibrar na rádio.
Travaram em Santo André para receber remessas de bacon, algodão doce e Nutella. As Irmãs Lapin tinham estado a bronzear-se(bem precisam…) no Bico das Lulas, e agora pessoalmente vinham trazer os mantimentos, e acarinhado Trampinhas com um prazenteiro puxão de orelhas.
O nosso “amigo orelhudo” sabia que a sua progenitora biológica tinha decidido e delineado o melhor para a sua formação – enquanto jovem savântico e (sobre)dotado de uma memória paquidérmica – ao afastá-lo de um agregado familiar “quebrado”, dificuldades económicas, a emigração dos agricultores e rendeiros, e execuções de dívidas por parte de “Haitongs“. “Trampinhas” era Nigeriano, mas “temperado” com Hispanofilia.
Tal como um ex-Rei dos “Verde-e-Brancos“, também ele conseguia recitar Cervantes e José Ortega y Gasset, mas estava agora prestes a tornar-se Lusitano, e a novidade suscitava-lhe tanto entusiasmo quanto ansiedade, e a inquietude era omnipresente naquele porão. Cansado de tornados, de secas, de touradas e de “bullying“, ele ia em busca da sua “Califórnia”, acalentando sonhos de prosperidade, colégios, emprego e felicidade.
Mal assentou em Cascais, Trampinhas, sempre independente e explorador, ávido de conhecimentos, atravessou a rua, e foi matricular-se no Colégio St. Julian’s, onde depressa se revelou um “wunderkind” e mostrou aptidão para zoologia e Geografia Africana. Por aí não se ficou, atravessou a “fronteira”, passou pela vivenda de Rita Pereira sem sequer lhe dizer “bom dia!“, e foi até à Vila da Parede. Por lá, ele descobriu uma delicatessen fabulosa, mas melhor do que isso, “deu de trombas” com a livraria Europa-América na Rua José Relvas. “Arrondissements” esses, onde anos antes, a Mamã Fuentes, me deliciava a mim, com literatura apropriada de “Il etait une fois l’espace” e merendas de sandes com “charutos” de fiambre enrolados dentro de “papos-secos” quentinhos, e com sobremesas de cerejas cristalizadas, brigadeiros e uvas verdes, enquanto eu, me refrescava na piscina.
Trampinhas depressa se tornou meu confidente, e juntos, passeávamos por Carvavelos, Parede e Estoril. Passávamos tardes soalheiras no Estoril Sol a brincar com Nautico-Modelos e a ler revistas mais indicadas para aqueles com mais 10 anos do que nós. Adorávamos ir com as nossas Mães(que são irmãs) comprar pão à Praça Amadeu Duarte, e posteriormente, íamos ao jardim. Adorávamos uma ponte que arqueava sobre um lago artificial, e a partir daí, distribuíamos pedacinhos de pão aos patinhos, nenhum dos quais, se chamava “Trump“.
Eram os melhores dos tempos, e que concomitantemente produziam memórias tão doces quanto indeléveis. Para almoçar, íamos até ao Toscano, onde comíamos Canelones ou Tornedós com linguiça assada e aprendíamos a língua de Shakespeare ao trocar impressões com turistas Americanos quando a bexiga apertava e nos tornávamos “vizinhos de urinol“. À noite, a nossa predilecção era o Solar de São Pedro, onde o bife com molho de champignons era divinal, tal como era o gelado de chocolate polvilhado com hortelã pimenta, e a decoração, com aquários nas paredes e portas de saloon guardando o acesso aos WCs. Ocasionalmente, desbravámos a estrada da Serra de Sintra, para do outro lado da montanha, como Reis e Rainhas irmos lambiscar às “Saloias“.
Em Lisboa, Trampinhas e eu começámos a desenvolver interesse pela 7ª “Arte“. Adorávamos ir ao antigo Cinema Império ver “Regresso de Jedi” e “Operação Tentáculo“, o ano era o de 1983, e por essa altura, a Baronesa Thatcher, em virtude do seu triunfo na América do Sul, caminhava sobre água(os seus críticos diziam que o fazia porque ela… “não sabia nadar“), e o “cocainómano de Lanús” jurava vingança, mas determinado a fazê-lo, sem recurso a Harriers, nem Vulcans, nem Exocets. Em Lisboa, o Papá Fuentes chegava a casa com o Expresso, e eu observava-o sentado na cama a ler esse semanário, e depois, miméticamente eu fazia exactamente o mesmo no meu quarto, embora, ocasionalmente distraído com o meu boneco de “E.T. O Extraterrestre“, cujos olhos brilhavam no escuro e como um papagaio dizia “E.T. phone home!” vezes sem conta.
O meu Pai via o noticiário, e eu fazia o mesmo, hábito esse que perdi algures após o Atentado de Lockerbie em 1988. De manhã, acordar era terrível, e dormir era(e ainda é) a melhor coisa do Mundo. Eu costumava deitar-me de barriga para baixo, de cotovelos no chão em frente à porta da casa de banho, fechava os olhos, e ficava a ouvir a água do chuveiro a correr, era o som mais confortante do Mundo. E os finais de noite eram passados ao fundo cama dos meus Pais, a meio metro do televisor, transfixado a ver “Balada de Hill Street“, escapismo televisivo, no qual Charles Haid era o nosso favorito. E adorávamos o gato no final dos créditos.
Quando podia, eu trazia “Trampinhas” e os nossos amigos até casa, e o “entretenimento” era simples, não havia ainda VHS nem Spectrum 48K, quanto mais BlueRays e jogos de computador ou World Wide Webs. Íamos ao armário(tão, tão alto… tão, tão perigoso) sobre o lava louça buscar a lata de Milo(chocolate em pó) e comíamos esse doce pó com colheres de sopa. Ocasionalmente, a empregada doméstica fazia-nos sandes de manteiga polvilhadas com açúcar.
Trampinhas já então, tinha outros interesses, ele adorava ir à papelaria Ícaro comprar pastilhas gorila e livros do Tio Patinhas, e depois, brincava no escorrega do Jardim na Rua Pedro Calmon, e posteriormente, o meu “amigo Africano” ia até ao Miradouro de Santo Amaro ver o Tejo e sonhava com o futuro. À noite, de regresso a Carcavelos, Trampinhas dormia debaixo da cama, e com as luzes já apagadas e o “recolher obrigatório” decretado inflexivelmente para nunca mais tarde que as 20:00, ele com recurso a uma lanterna, ia desfolhando “As Neves do Kilimanjaro” e sonhava com a savana.
Dia seguinte, era dia de escola, eu em petrificante pânico era “depositado” num Colégio no Restelo, já Trampinhas, sempre bonacheirão, ia alegremente para o colégio, onde depressa fez amizade com Eric Dier, embora, com a ocasional “desavença” gerada por somente um deles ser admirador de Bryan Robson. Os tempos eram bons, mas nada que viesse futuramente, se iria comparar com a magia de 1984, e os anos de nectárea inocência que o haviam precedido.
A escola era uma necessidade, e por menos pedagógicos ou por mais insensíveis que os professores fossem(excepto a Dª Alcina), ambos os colégios tinham bibliotecas, e enquanto eu precocemente aprendia o que era a Unesco e o Pacto de Varsóvia, Trampinhas depressa desenvolveu uma profunda admiração por William Holden, especificamente, pelo seu activismo e filmografia. Eu, fruto da idade, ainda era “confuso”, nessa altura nem sequer possuía acuidade mental para distinguir William Holden de David Janssen…
Depressa, outros colégios(e com bibliotecas ainda maiores) viriam, inclusive, recordo-me de uma matina em que todos(aparentemente) os alunos efusivamente esbracejavam e cantavam “Juve Leo! Juve Leo! Juve Leo!“. Eu, na pureza da minha criancice, pensei que estavam a cantar “Jubileu!“, que por esses dias, era uma tablete de chocolate muito popular(nessa altura, eu era mais “adepto” dos “After Eight“) e difundida por reclames televisivos com um “jingle” mesmerizante. Mas não!
Era o primeiro dia de aulas da semana, mas na véspera, os anfitriões do “Castelo Verde-e-Branco” tinham “espetado” 7 golos ao “Grande Cão Vermelho“, e naquele Colégio, os alunos, ou eram todos “Verde-e-Brancos” ou do PSD. No mínimo, éramos todos Católicos Romanos, e sabíamos que estávamos nalguma espécie de “Fordham” e não em “Yale“, embora, não gostássemos muito da forma opressiva e “constritiva” com que os padres nos tratavam, com recriminações intimidatórias, ou até mesmo com violência, opugnações típicas da rigidez “pedagógica” dos anos 80. O “Challenger” já havia explodido, mas para aquela “cambada”, ainda estávamos em Janeiro de 1953…
Como se nós, com 10 anos, já tivéssemos a obrigação de ser adultos e… “autómatos“, “purgados” da rebeldia infantil, e “dessexuados” do temperamento individualista que cursava pelas nossas veias, que nos nutria a fantasia e nos diferenciava dos “broncos” que “sobreviviam” fora daqueles muros. Para alguns dos meus “camaradas de sebenta“, haveria tempo para toda essa “domesticidade” de idealização, e “submissão” ao “Torguismo Compulsivo” administrado aos “humanoides” ali matriculado. Mas essa já é outra estória…
Noite Santa, e tende coragem!.
Texto: Santiago Gregório Fuentes.
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